Entrevista: Um café com Lobão

Lobão apresentou o show “50 Anos de Vida Bandida” no Opinião. Foto: Alex Vitola

O roqueiro é aquele que desobedece. Quem gosta de rock e é muito comportado é só uma pessoa que gosta do ritmo – e tudo bem. Mas a gente precisa do roqueiro. Lobão é um deles, e isso faz com que ele seja um dos mais genuínos e interessantes do país. Não à toa, em 2024 o artista circulou pelo Brasil com a turnê comemorativa “50 anos de Vida Bandida”, em que celebrou cinco décadas de carreira.

Lobão é um exemplo claro de quem consegue canalizar suas inquietações na música. Ele traz o grito, a ferocidade e a vulnerabilidade no seu trabalho, e a gente precisa disso pra expressar as agruras e as doçuras com que a nossa existência nos presenteia.

Lobão acumula não só músicas de sucesso como também polêmicas que marcaram sua trajetória, como da vez em que foi preso por porte de maconha em 1987 e decidiu gravar o clipe de “Rádio Blá” do presídio mesmo. Ou então quando deixou o palco do Rock in Rio II depois de apenas 15 minutos de show tamanho linchamento da plateia metaleira – e ainda assim colocou a bateria da Mangueira pra tocar na apresentação. Mas algumas discussões em que esteve envolvido impactaram em um sentido positivo numa esfera maior, como a luta pela numeração dos CDs nos anos 1990 ou a produção do álbum A Vida É Doce (1999), que se deu totalmente independente após ser rejeitado pelas gravadoras e que foi vendido em bancas de jornais. Suas últimas polêmicas envolveram seus posicionamentos políticos, que se destacaram por, agora, serem antipetistas, uma vez que o artista já chegou a pedir voto para seu principal expoente, Luiz Inácio Lula da Silva, em rede nacional nos anos 1980.

O show “50 anos de Vida Bandida” pousou em Porto Alegre no dia 23 de novembro no Bar Opinião. Com a casa mais cheia do que nas últimas apresentações na capital gaúcha, o power trio, formado por Lobão (voz e guitarra), Guto Passos (baixo e vocal) e Armando Cardoso (bateria) teve muita música e pouco papo, com o setlist composto com um pouco mais de baladas que o repertório convencional. Um dos momentos mais bacanas foi quando o artista tocou um pouco de bateria, seu primeiro instrumento.

Lobão tocou bateria em show em Porto Alegre. Foto: Alex Vitola

Mas antes, um café

Pouco antes do show, fui até o seu hotel para fazer uma entrevista de dez minutos para esta coluna. Após Lobão ir me buscar pessoalmente na recepção e me levar até o restaurante do local, no terraço, descobri que ele ainda tinha uma hora livre até precisar ir para a passagem de som. Com o espaço praticamente vazio e uma torneira de café à nossa disposição, aproveitamos todos os 60 minutos para conversar sobre carreira, rock, política, MPB e vida, sendo ela bandida, louca ou doce. Confira:

 

50 anos, bastante coisa. É uma vida, né? Queria saber o balanço da sua carreira que você faz. 

Em primeiro lugar, eu vou te dizer uma coisa. É muito engraçado perceber como passou rápido. 50 anos, porque quem deu esse título, quem deu esse conceito dessa turnê, foi o meu querido amigo Paulo Baron, meu empresário e que bolou essa turnê. Eu não sou muito de retrospectiva, mas quando eu caí em mim e vi que eu tinha 50 anos de carreira, eu falei: poxa, não é qualquer um que faz 50 anos de carreira, e aí eu topei, né? Então é uma turnê retrospectiva.

Tem música de todos os discos? 

Praticamente todos os discos. Não cabe. Eu tentei fazer, eu enxuguei o repertório e dava 87 músicas. Aí fui enxugando, deu 22, 23 músicas, que é o tempo de show normal. E aí é impossível você colocar tudo. O Rigor e A Misericórdia é um disco que não tem uma música sequer. “A Queda” não tá mais, acabou de sair, porque foi modificando, foi ganhando uma vida própria, sabe. Eu tinha uma barriga aqui, uma barriga ali. Não porque a música é ruim, mas de repente pela distribuição… 

E outra coisa que aconteceu que eu percebi é que o show ficou muito amarrado no início, porque a gente tinha um telão, meu sobrinho, que é um tremendo programador gráfico (João Puig) – ele fez todas as minhas capas desde 2016 –  Ele estava fazendo programação gráfica e ele fez uma extraordinária. Mas a gente começou com uma coisa e depois eu me arrependi muito. Ele também é músico, ele sincronizou cada movimento gráfico com os ritmos, as pulsações, as intervenções, os arranjos. E aí tinha que ter um sincronizador, um clique, e aí o Paulo sugeriu: faz um backing track, porque vocês são um power trio…

O que é backing track? 

Backing track é você fazer coisas pré-gravadas pra acompanhar a música. 

E só foi amarrando o show. Então a gente começou a ver que música que a gente tocava há muito tempo não funcionavam, pareciam intermináveis, ficava um horror, um saco. Então o show foi se moldando. A gente foi verificando que isso não dava certo, que tinha muita música, e que a gente ficava com medo de errar, foi um desastre. Então a gente falou: cara, a gente é um power trio, não tem backing track, a gente foi jogando tudo fora, sabe? 

Aí agora tem um show com três pessoas no palco, e aí as músicas ganharam uma outra vida. O último show agora, o que a gente fez no Tokyo Marine Hall, em São Paulo. A gente ficou: cara, que legal, que alívio. Então toda essa produção a gente jogou fora. E o show ganhou imensamente em termos de emoção, de pulsação. Então a gente foi fazendo isso. 

E antes tinha uma história, a gente começava com a Chapeuzinho Vermelho, “pela estrada afora…” Eu achei tudo isso muito legal, mas na hora não funcionava, sabe? A gente estava tendo uma pouca aceitação, mas eu saí muito frustrado. A gente estava cansado, exausto, de tédio, tava dando tédio. Então a gente foi tirando e foi reorganizando o show. Agora são as quatro últimas apresentações desse show. E eu já tô em outra, eu tô compondo disco novo, eu tô com sete músicas…

 

Queria saber então, já que você falou do novo trabalho, o Vale da Estranheza, se tem algum spoiler, eu vi que você tá retomando parceria com o Bernardo Vilhena, tem parceria com o Gerald Thomas também. 

Isso, isso, e eu tô muito emocionado com… Eu sou compositor, então ficar fazendo música velha só, me dá uma agonia, sabe, eu não sou assim, não tá em mim. Principalmente quando dizem que o rock tá morto. Imagina, cara, eu tô na melhor fase da minha vida. 

 

Realmente o rock não tá morto, mas pegando também esse gancho, eu já vi você falando várias vezes em entrevistas que o Brasil meio que rechaça o rock nacional. 

Mas sempre foi. 

Mas eu também vejo que tem muito público. Como você vê?

Olha, primeiro que as pessoas acham que o rock nasceu nos anos 1980, sendo que o primeiro rock gravado no Brasil foi Cauby Peixoto em 1954. Então as pessoas esquecem que teve Iê Iê Iê, a Jovem Guarda, Roberto Carlos, Os Fevers, e depois teve o rock dos anos 1970 que eu considero muito melhor do que os anos 1980, que é A Bolha, O Terço…

Por quê?

Cê tinha o grande Lanny Gordin, Pepeu Gomes, Luis Carlini, Sérgio Dias, Arnaldo Baptista, Liminha, o Pedrão, baixista com quem eu tive o prazer de tocar com a Marina Lima, o Pedrinho, baterista. Então você tinha grandes músicos que se sobressaíam. O Toninho Horta. Ele têm todas as influências dos Beatles, psicodelia, misturado com a música brasileira. 

Então, a qualidade dos discos d’Os Mutantes… Você não tem nenhum disco dos anos 80 que chegue perto. Você tem o Loki?, do Arnaldo (Baptista), é um disco épico. A Bolha do início de carreira, que é uma banda fulminante, os riffs., era uma coisa incrível. O Arnaldo Brandão era baixista d’A Bolha. Tinha um baixo de gota, um baixo vox. Então você tinha todos esses referenciais. Tinham sessões malditas nos cinemas, às meias-noites. Então você tinha uma vida noturna. 

Por exemplo, eu era do Vímana, a gente ganhava dinheiro só de ser do underground. A gente tinha um P.A. enorme, técnicos de som, toda uma estrutura de supergrupo, fazendo shows, assim, um mês no Teatro Tereza Rachel, outro mês no MAM do Rio. Tinha um point. Então cê passava o tempo todo tocando. E todo mundo morando em comunidade, parecia um monastério, porque ensaiava oito horas por dia, músicas muito mais complexas. 

E outra coisa que era sensacional: Você tocava às vezes três horas de show, as pessoas não queriam saber se tinha música nova, hit. Tomavam um ácido e ficavam babando na gravata, sabe. E eram shows incríveis, você respirava aquilo. Nos anos 70, eu me lembro que em Ipanema, até o padeiro era psicodélico, até o corretor da Bolsa de Valores tinha uma gravata toda colorida. As pessoas eram exuberantes, todo mundo tinha costeleta, os jogadores tinham cabelo black power, todo mundo era muito exuberante, era muito rock’n’roll a situação. Você tinha o píer de Ipanema, as Dunas do Barato, todo mundo era doidão. Todo mundo queria pelo menos aparentar que era da Era de Aquarius. 

Era moda, então?

Não era uma moda, era muito mais um zeitgeist. Não era uma moda, era uma maneira de existir, uma história, de uma ideia histórica. Tanto é quando a gente fala sobre zeitgeist. Por exemplo, hoje em dia, você tem bandas excepcionais, novas, como Sweet Desire, a Grace Bowers, você conhece? 

Não. 

Agora fez 18 anos. Uma garotinha toda encaracolada. E tem uma banda só de negão. Anos 70. Mas só o que tem um problema. É fora de contexto do zeitgeist. Os caras com os cabelões, iguais, soa muito bem. O Black Crowes já é uma banda setentista que também tá fora de época. Porque eles recuperaram o Led Zeppelin, que era banido, era pecado, pegava super mal nos anos 80.

Por quê? 

Porque o punk matou o rock dos anos 70. O punk decretou a morte do Pink Floyd. A primeira camisa punk foi o Johnny Rotten: “Pink Floyd’s Dead”. 

Então assim, foi da noite para o dia que houve a maldição do que poucas bandas, do início dos anos 70…The Who sobreviveu, Neil Young virou meio que padrinho. The Stooges… O Iggy Pop virou um “godfather” dos caras. Mais o Yes, Emerson, Lake & Palmer. Essas bandas acabaram, viraram poeira. E essa safra paulatinamente foi sendo revisada. E um dos responsáveis foi o Black Crowes, que regravou disco só de Led Zeppelin, em 94, se não me engano, com o Jimmy Page. Estava na Bahia. Baiano. Cachaceiro.

Então aquilo ali, você respirava aquilo. Ipanema era uma loucura. Tudo era muito efervescente, eu sentia que eu tava vivendo uma época de outro. Eu ia para as lojas de discos e ficava: Cara, é impossível! Isso em 1971. 

Eu comprei o disco do Black Sabbath, o Paranoid, que foi lançado no final de 70. Oito meses depois ele lançam o Master of Reality. O Led Zeppelin lançou em julho de 1970 o Led Zeppelin 3, em novembro de 1971 lançam Led Zeppelin 4. Então assim… All Things Must Pass (de George Harrison) passou um ano e meio na parada desse primeiro lugar. “My Sweet Lord”, primeiro lugar. 

E aí você tinha as músicas comerciais: The Carpenters tocando Burt Bacharach. Aí você tinha soul music: James Brown, Wilson Pickett, Roberta Fleck, Donny Hathaway, Isaac Hayes. Cara, só era musicaço. Musicaço de todos os tipos. Carole King, James Taylor. Tudo em um espaço de menos de um ano. Uma enxurrada de coisas. Humble Pie. Cactus. Mountain. Atomic Rooster, Amon Düül, Triangle, uma banda de proto heavy metal francesa… 

Então isso nunca vai acontecer. Não é porque era só rock, era uma época, musicalmente também aqui no Brasil, que tinha os Festivais da Canção. Então você só tinha musicaço. 

Na minha rua tinha o Gutemberg Guarabyra, MPB4, Chico Buarque, Quarteto em Cy, Tônia Carreiro, só no quarteirão. José Wilker. Todo mundo morava no meu quarteirão. Então isso é uma muvuca, né? Uma muvuca. 

Eu ia nos festivais. Por exemplo, eu fui para os de 66, 67, 68, 69, 70 e 71. No festival de 71, teve Tony Tornado com a “BR-3”, o que era com o Trio Mocotó e o maestro Érlon Chaves. Eles acabaram com a classe média porque eram negros, vitoriosos, e uma coisa que poucas pessoas sacaram foi que, naquele fatídico festival, três negros, que foram consagrados naquilo, foram todos dizimados. (Wilson) Simonal, Tony Tornado, que teve que virar ator porque teve um incidente, ele casou com a Arlete Salles, aí ficou amaldiçoado. Ele foi execrado por ter se casado com uma mulher branca e aí aconteceu um acidente terrível: ele tem dois metros de altura, enorme, e aí ele caiu do palco, caiu em cima de uma menina, uma tragédia, e a partir daí nunca mais ele conseguiu ser cantor. Ele virou ator, um tremendo ator. 

Foi a partir daí que o Taiguara sumiu também? 

Também, o Taiguara sumiu por motivos diferentes. O Taiguara, além de ser meio depressivo, ele foi perseguido político. Mas outros também foram. E era um tremendo compositor também. Outro cara, o Maestro Érlon Chaves, era sensacional. 

Eu vi isso tudo acontecer no palco. Meu pai era mecânico, fazia manutenção de uma firma de táxi, que levava os artistas do festival para o Maracanãzinho. Então a gente ganhava convite, a gente ficava atrás da mesa dos jurados. Eu fiquei atrás do Maestro Henry Mancini, ele era presidente do júri oficial. E tinha outro cara que estava no júri, ele estava assim, a 20 centímetros de mim, que era o Wilson Simonal. E ele fez aquela apresentação histórica no Maracanãzinho, cantou “País Tropical”, e dividiu o Maracanãzinho cantando. Eu ficava lá, eu estava vendo aquilo tudo. Então isso tudo me calou muito. 

E seis meses depois, esses três negros se ferraram. O maestro Érlon Chaves foi espezinhado numa loja. Maltrataram, humilharam ele porque ele estava com um monte de loura, e sofreu um ataque cardíaco a loja de discos, e morreu fulminantemente. Então eu convivi com coisas lindas e coisas que marcaram muito tragédias, né? 

Agora, pra você ver, eu vi a estreia do Raul Seixas cantando “Let me sing my rock and roll”, a estreia do Jards Macalé tocando “Gotham City”, Mutantes cantando “Mande um Abraço pra Velha”. Então isso tudo estava acontecendo na época. Então aquele zeitgeist, e essa sensação que eu tinha que eu tava vendo algo que não ia se replicar nunca mais era muito forte. E verdadeiramente isso aconteceu comigo.

A primeira vez que eu me senti velho foi em 76, quando o advento da disco music. E o punk também. Até por sobrevivência me tornei um punk. Não tinha jeito, era uma situação que o rock tinha acabado e eu tinha que me reinventar.

Mas por que você acha que o rock dos anos 1980, o rock brasileiro atrai tantos seguidores hoje em dia, ao mesmo tempo que tu acha também que ele foi rechaçado?

É uma tremenda ironia do destino. Por exemplo, pra você ter uma ideia, em 1979, a grande jornalista Ana Maria Bahiana fez uma tese jornalística dizendo como o rock tupiniquim, pela letra, pela língua, jamais se tornaria algo relevante na cultura brasileira. Porque realmente, com algumas exceções –  Rita (Lee) com Paulo Coelho… – , em termos de prosódia, o português não era legal na maioria dos rocks brasileiros. Então não havia uma substancialidade numérica de músicas legais de rock que pudessem indicar que o rock seria uma cultura nacional. Então existem essas teses, como a passeata contra a guitarra elétrica… 

Nos colégios – Eu ia em festivais de colégios -, tudo que eu participei, as pessoas eram ávidas por Chico Buarque, mesmo pessoas da direita. Professoras de Cultura Moral e Cívica, que eram da ditadura, eram fãs do Chico Buarque, e era unanimidade. Então assim, a música brasileira era MPB e bossa nova, o rock era escória. Isso sempre aconteceu, foi muito marcante e ainda é. 

Então em 81 acontece a primeira rachadura muito importante, que foi o aparecimento da Gang 90 e As Absurdettes no Festival Shell, com Júlio Barroso fazendo uma parceria fantasma com Guilherme Arantes com a música “Perdidos na Selva”. A música que ganhou o festival foi da Lucinha Lins, porque era uma música toda MPB, e ninguém conhece a música. É insignificante, mas ela tinha uma pomposidade característica do que se considera a dignidade da música brasileira. 

E isso que eu acho que esse ranço que nós temos. A música brasileira tem que ser digna. A música brasileira que a classe média consome, que tem uma síndrome de dignidade intelectual, vamos dizer assim. Então, a música brega, a música do povo – Waldick Soriano, Nelson Ned, esses caras, nunca foram tidos como música brasileira. A música popular brasileira, ou a própria música sertaneja raiz – Tonico & Tinoco, Jararaca & Ratinho, Ranchinho. Então essas coisas são preconceitos que a gente tem e são muito vivazes no imaginário coletivo da cultura brasileira. 

Mas um ano depois surgiu a Blitz. E aí sim, a Blitz não foi uma rachadura, ela foi um terremoto. Porque ela abriu uma bolha que se explodiu. Era uma bolha que já existia. Todo mundo gostava de rock, mas era proibido. Aí tinha a cena de Brasília, a cena de São Paulo, o Rio, Porto Alegre, Bahia, tudo, né? Foi saindo multidão de bandas pelo Brasil inteiro. 

E aconteceu uma coisa muito interessante, a gente não deu pra segurar aquilo, porque aquilo virou arrimo da indústria fonográfica. A indústria fonográfica cresceu 80% do seu tamanho. Foi inventado o show business. Eu peguei ainda a pré-história, porque eu tocava com a Marina. 

Pra você ter uma ideia, não tinha PA. Você tinha o crooner, um alto-falante, um microfone pra voz. A banda não tinha nenhuma microfonação, não tinha roadie. Quando tocava com a Marina, ela tava com a melhor empresária do ramo, que era a tia Leia, que era a empresária do Gil, do Caetano, da Bethânia, da Gal, top de linha. Não tinha roadie. Tinha maquiador, tinha pai de santo, tinha cambono, tinha cabeleireiro, mas não tinha contrarregra. 

O que é cambono mesmo?

Cambono é aquele cara que traduz o que o Exu fala. Eu já fui em cambono, no centro de macumba. 

E aí eu peguei o showbiz muito sofisticado. Tinha dois diretores, o Waly Salomão e o Antonio Cícero, tinha cenógrafos, mas não tinha som. Eu montava a minha bateria e não tinha microfone na bateria. Essa era a estrutura de showbiz até 81, 82. Por exemplo, nós do Vimana, em 74, 75, já tinha P.A., tinha roadie, tinha estrutura de som infinitamente superior a qualquer showbiz dos brasileiros. 

Então, a estrutura era meio escravocrata. Porque esses caras eram artistas solo, grande porte, e aí não falavam com ninguém. A Maria Bethânia não se dirige aos músicos. E essa é uma cultura que existia na época, sabe? Na MPB é a diva, né? O poeta histórico… Então é uma coisa meio escravocrata, uma coisa meio de vassalo. 

Pra você ter uma ideia, quando eu tocava com a Marina, em Salvador, eu estava montando minha bateria, as ferragens, todo mundo montando, e eis que abrem as portas de madeira, e aí entram Marina e Bethânia, e um vassalo do lado com um rolo, um cilindro… o cilindro era um tapete, aí ela dava dois passos, ele esticava o tapete, ela andava dois metros, ele rolava o tapete e desenrolava o tapete. Eu falei: “Eu não estou acreditando”. E ela parecia Iansã, toda de branco. 

É talvez por isso eu seja o maior iconoclasta da MPB. Porque eu vivi como um músico contratado, e eu vi o que é o abuso, o que aquilo significava. E aquela coisa: são intocáveis. Se você for falar alguma coisa, você é evaporado da cena. Então, é um coronelato realmente. Hoje em dia eu acho que tá mais do que consubstanciado. Qualquer pessoa que seja um observador mediano vai observar esse tipo de conduta. 

 

Falando nisso, como é que está, então, a sua relação com a MPB, no sentido de que você tanto criticou e até você mesmo regravou algumas músicas dessas pessoas – você inclusive escreveu um texto pedindo perdão…

Não pedi perdão a ninguém.

Mas você declarou o seu amor por eles.

Mas eu sempre declarei um amor. Por exemplo, na música “Para o mano Caetano”, tem um “Te amo, te amo”. Eu nunca disse que eu odeio Caetano. 

Tu falou uma coisa no podcast do Clemente (Magalhães) que me chamou muito a atenção. Que essas regravações que você fez, por exemplo, no projeto Canções de Quarentena, foi onde você pôde declarar o seu amor. 

A tudo que eu ouvi.

Isso, de uma maneira que na vida real tu não consegue.

Sabe o que é? Eu consegui declarar o meu amor a meu DNA adolescente e criança. 

As pessoas confundem. Tem gente que diz assim: “Mas você falou mal. Desde quando você gosta dele?”. Mas são coisas diferentes. 

Por exemplo, eu me lembro que eu tava jogando bola na rua quando eu tinha 9 anos de idade, eu me lembro que eu tava no Réveillon de 68 ou 69, o Gilberto Gil tava só lançado uma música, e aí de repente, cara, eu tô jogando bola na rua, aí eu jogo a bola num cara de terno, gordinho, de cavanhaque, era ele, Gilberto Gil. Ele era funcionário da Gessy Lever. Eu achava “Aquele Abraço” uma coisa muito importante. Mas naquela época eu era um garoto, eu não sabia nada daquilo. 

Então aquele amor que eu tinha pelo Caetano, pelo Gil, por todos… Eu tocava Chico Buarque de Hollanda com minha mãe na bateria, e admiro ele. 

Agora, também tem uma coisa, eu não acho nenhum tipo de gênio. Eu acho grandes letristas. Por exemplo, o maior disco, que eu acho, da música brasileira, é do Milton Nascimento.

Eu não vejo nenhum disco que eu conseguiria ouvir integralmente, nem do Caetano nem do Gil. Acho que eles são talentosos, são músicos de talento, tiveram uma protuberância artística substancial, mas não é o “my cup of tea”. Eu não entendo essa genialidade. E vejo assim, eu gosto como eu gosto de uma série de coisas. Tenho o maior carinho, porque eles fizeram parte do meu imaginário. Agora, discordo totalmente da maneira do poder político e cultural tirânico que eles exercem. Então uma coisa não tem nada a ver com a outra. 

Na hora que eu estou achando que o mundo vai acabar, uma pandemia, que não tinha cura de vacina nem nada, eu vou mostrar aqui, vou registrar isso aqui (não sei se alguém vai ouvir ou não vai), tudo aquilo que me influenciou. E eu acho que é honesto da minha parte, porque eu não tenho ressentimento quanto a eles. Eu tenho, sim, vários senões em relação à postura e combati muito e combato essa postura. Eu acho que ela não é benéfica pra música brasileira. É uma presença tóxica.

Agora, só pra voltar. A ironia da coisa de por que dos anos 80… Dos anos 81 até 85, nós tivemos um fenômeno que nunca mais aconteceu dentro da música brasileira e do próprio rock, porque todo mundo dizia: “Mas isso é um verão.” Isso foi até 90, com dez anos de preponderância do rock do Brasil. Então de 81 até 85, com o advento do Rock in Rio, aconteceu um fenômeno muito grande, que o público que começou a consumir… Quando saiu Titãs, Legião (Urbana), Paralamas (do Sucesso), Barão Vermelho, era uma legião de fãs que preferiam comprar um disco do Legião do que um do Joy Division. Preferiam comprar o disco do Paralamas do que do The Police. Preferiam comprar o disco do Titãs do que do Bad Manners. Então foi criado um tipo de relação de público com o artista, de uma fidelidade, de uma admiração, que era assim: “Isso é a banda que me representa.” 

Porque as letras, esse foi o grande fenômeno do rock dos anos 80. Tinha uma precariedade, tinha umas coisas que eram imitações musicais, mas foi inventada, foi descoberta a maneira de melopéia da musicalidade do som da língua brasileira / portuguesa, se encaixar perfeitamente numa canção. Esse foi o grande fenômeno que ocorreu, e aí sim, quando isso encaixou, o rock virou uma cultura de música popular brasileira. Porque aí era um cancioneiro que se estabelecia. Isso foi muito subversivo. 

Então o que aconteceu? Em 1985, com o advento do Rock in Rio, que só aconteceu porque a indústria do show business foi revolucionado, ele veio como um algoz do rock brasileiro. Porque ele veio privilegiar um show business que mutilou os shows brasileiros – Tem contrato internacional disso, dizendo que é proibido mais de 5% de som, 5% de palco, 5% de espaço, 5% de mídia, 5% de iluminação. 

Isso nos festivais? 

Em qualquer festival que tenha a língua inglesa e outra língua estrangeira. 

No Hollywood Rock tinha isso também? Porque eu sei que no Rock in Rio tinha.

No Hollywood Rock era muito mais ameno isso. Tanto é que eu consegui ser a maior atração do Hollywood Rock e, no ano seguinte, em menos de um ano, eu não consegui terminar o mesmo show que me consagrou no Hollywood Rock. Então as diferenças já eram visíveis nos resultados. Mas tinha também, sabe? Agora você tem, por exemplo, o Lollapalooza, eles tocam 11 da manhã, são jogados. Tem uma lei que é o seguinte, só contratam artista brasileiro como boi de piranha, porque você não pode fazer um show totalmente internacional. Você tem que ter a presença de brasileiro.

Se os brasileiros fizessem um conluio e dissessem “Não. Enquanto for assim, não vai ter”, ia acabar o festival. Mas sempre tem um gaiato que toca em palquinho vagabundo, merreca. É isso que acontece. 

Então quando começou essa coisa do Rock in Rio…Aí você vê, as bandas que vinham arrebentando: Barão, Paralamas, num palco pequenininho, aí vinha um artista gringo, mega luz, um palco enorme, uma pega produção… Um massacre. E isso afetou o imaginário. E a partir dali, começou aquela coisa: “rock brasileiro é uma porcaria”. Era um contraste absurdo. Mas era manufaturado também, porque você não tava tendo igualdade nas condições de se apresentar. 

Agora a conclusão disso tudo: na história da música brasileira, esse período de quase dez anos, foi contabilizado o período mais profícuo de canções em língua portuguesa de toda a história da música brasileira. Não teve a bossa nova, não teve a Tropicália, que produziu tantos hits. E grandes autores: Julio Barroso, Cazuza, Renato Russo, Herbert Vianna, Humberto Gessinger, Arnaldo Antunes… Cê tinha uma porrada de gente escrevendo muito bem. E escreveram com maestria canções que foram gravadas precariamente, mas conseguiram a concisão. A Bossa Nova era super sofisticada mas cometia o erro de ser tão sofisticada e tão banal ao mesmo tempo. Porque você ouvia “Garota de Ipanema” em loja de departamento. O resultado era muito banal. 

E outra coisa: os nomes das bandas eram Titãs do Iê-iê, Kid Abelha & Os Abóboras Selvagens, uns nomes muito fofinhos e insólitos, e de repente o discurso comportamental, político, quem deteve foi essa geração. Quem detinha o zeitgeist era o rock brasileiro. 

Eles tentaram terminar isso de qualquer jeito, só que passaram-se 40 anos e você vai nos festivais grandes, enormes, tem as mesmas bandas tocando pra um público diverso, multigeracional, cantando todas as músicas. E essas músicas, então, ironicamente, elas não são mais do Rock Brasil nem dos anos 80. Elas fazem parte do cancioneiro da música popular brasileira. 

 

Você citou a questão do rock dos anos 80 falar muito de política, principalmente a partir da segunda metade dos anos 80. Nesses 50 anos de carreira seus, não dá pra passar despercebido a questão das suas opiniões – não só sobre política, mas opiniões que foram consideradas polêmicas. Isso atrapalhou muito a sua carreira? Você sente isso? A mídia também fez isso, de acabar associando você pura e simplesmente pelas suas opiniões políticas. Então eu queria saber se isso atrapalhou a sua carreira.

Imagina, nada me detém. Sou uma pessoa feliz, nada pode deter uma pessoa feliz. 

Mas não atrapalhou a questão de shows, de circuito, de vendas de discos? 

Isso não interessa. Eu faço música para me curar, entendeu? 

E eu acho o seguinte, eu tenho uma responsabilidade, eu sou responsável pelo que eu faço. Eu sei os riscos que eu corro. “Pô, os caras tão me boicotando”: Eu não sou um homem de fazer isso. Eu sou um cara que aprendo muito com tudo que acontece comigo. 

Geralmente, os meus fracassos me levam a coisas bem mais longe do que minhas conquistas. Então, eu não tenho nada a reclamar, porque tudo que aparece na minha vida, eu me fortaleço. Tudo que acontece comigo – Talvez por isso que eu pareça ser inconsequente. Eu não sou. Porque quando você tem uma atitude corajosa, você primeiro tem que ter medo, porque o medo é saudável na medida que ele seja um alarme para uma coisa real que tá acontecendo. Então você fala: “Pô, isso daqui, pode acontecer isso, pode acontecer aquilo.”. Aí cabe a você se você vai fazer ou não. Então se eu tenho esse critério de poder julgar essas situações e decidir cometer determinadas atitudes, a responsabilidade é totalmente minha. Eu sei do que eu estou tratando, eu sei os riscos que eu corro. E se eu não correr esse risco, eu também não sou artista. Porque arte é coragem. Se você tira os riscos da vida…  

Eu não sou funcionário público, eu não estou procurando um cabide de emprego, não estou procurando estabilidade no trabalho, então a minha vida é uma aventura. Eu não posso chegar e querer eliminar as aventuras da minha vida, os riscos que eu corro na minha vida. A riqueza da minha vida constitui-se exatamente em todos esses embates, entendeu? Se eles não tivessem, a vida seria muito banal. 

 

Tu falou dessa questão de, pra ter coragem, você precisa ter medo. Isso me leva a outra pergunta. Pra mim, você é um dos roqueiros mais viscerais do Brasil, e eu acho que o rock precisa dessa visceralidade. Eu gosto dessa coisa do grito, eu gosto dessa coisa de rebeldia, raiva, medo, alegria, canalizada numa coisa, alguma coisa para exorcizar. Eu vejo muito essa questão na sua arte, mas também tem uma coisa que é uma das que mais me fascina, que é a questão da vulnerabilidade. Eu vejo que você tem momentos que você consegue extravasar e tem momentos que eu te vejo num estado de bastante delicadeza. Eu acho isso muito bonito. E eu queria saber uma opinião sua sobre esse espaço da vulnerabilidade no rock.

Eu pessoalmente sou uma pessoa com muitas arestas. Por exemplo, eu acho que a própria dinâmica das minhas músicas, etc., eu não faço nenhuma concessão, sabe? Por isso que as pessoas acham que eu sou contraditório. 

Aí, por exemplo, às vezes me aparento ser uma pessoa doce. Ontem mesmo tava na TV: “Poxa, mas o Lobãozinho, paz e amor”… Falei assim: “Mas eu sou um cara dócil, eu não quero me caricaturar como aquele roqueiro que as pessoas sempre falam”. Agora, se não é pra ser dócil, eu também não sou dócil. 

Mas assim, naturalmente sou uma pessoa amorosa. Eu sou muito emocional. Sou muito carinhoso, sou um cara legal até. Não quero me promover, mas o que eu quero dizer é: Eu tenho um lado mais delicado, mesmo. E eu também tenho um lado melancólico, que eu acho que todo artista tem. Acho que sempre há uma dose de melancolia, inclusive a única maneira em que ela se torna alguma coisa saudável. 

Assim como a melancolia e assim como o grito, que é primal, quando você compõe uma música de teor melancólico, você fica em estado presente. Quando faço uma música, é um presente pra mim. E é uma espécie de eletroencefalograma da sua alma. Quando você faz uma música, é tua essência. As pessoas querem separar a pessoa da música. Não!

Você acha que não dá pra separar artista da obra.

Claro que não. Não tem como. Aquilo ali é ser você na sua pura essência. Se há alguma coisa mais você do que você, é a sua música. Ela é muito mais genuína que você, porque você é uma série de poses, de premeditações, de simulações e de certezas equivocadas de si próprio. Enquanto que a música, quando ela é verdadeira, ela não tem esse filtro. Então ela é uma tradução da sua alma. E não é muito corriqueiro você ter, dentro de um artista mesmo, esse pico de dinâmica tão distanciada entre uma porradaria extremamente pesada e músicas extremamente delicadas. Eu acho isso muito legal porque, primeiro que eu sou assim, e depois eu acho que isso é um trunfo. Por isso que as pessoas não conseguem me localizar muito porque acha que eu sou contraditório, não sei o quê. Porque não entendem a complexidade da vida, nem tampouco a complexidade da minha maneira de ser. 

 

Lobão, em 50 anos de carreira e 67 anos de vida, queria saber: A vida é doce?

“A vida é doce” enquanto música… Eu também falei com um cara  que fez uma contraposição entre vida bandida e vida doce. Eu falei assim: “Olha, se você entendesse o teor da história de “A vida é doce”, você ia perceber a tragédia que é. Então, como é que eu posso fazer uma música que é uma das músicas mais trágicas que eu já compus e concluir que a vida é doce ouvindo uma música trágica? 

Mas eu acho que dentro dessa música tem um pouco de doçura.

Mas assim, quando o personagem diz: “Me perdoa, a vida é doce”, o subtexto  é: Me perdoa, a vida é muito triste. Me perdoa, a vida é insuportavelmente triste. 

“Não pude fazer nada, não me perdoe.” 

É a ironia de um desesperado. Como ele fala: “Eu sou a mosca que pousou na sua sopa, a coisa mais brega.” É uma pessoa que passou por um momento de perda, de abismo, de traição e volta para a pessoa amada pedindo perdão, e numa afirmação de uma ambiguidade dramática. A frase “A vida é doce” não cabe de maneira nenhuma dentro daquela história. Eu acho que esse é o choque térmico que dá mais condimento ao significado da música. 

Então, quanto a isso – só para a gente chegar na outra ponta – , olha, eu sou uma pessoa eminentemente feliz. A vida tem muitas perdas, muita dor, mas tem aquele ditado: A dor existe, mas o sofrimento é opcional. 

Eu aprendi, no transcorrer das décadas, e descobri, principalmente com meus gatos, a ser feliz. Me deu um insight quando vi a Maria Bonita em cima de mim. Eu estava chorando um dia, desesperado. Ela no meu peito, assim, pequeninha, e me olhando, deu uma ronronada. Eu olhei e disse assim:” Cara, o que você quer da vida? A felicidade aqui, o seu privilégio. Tem um animalzinho aqui te dando toda a atenção. Isso é um privilégio da vida”. Eu tive uma epifania, e aquilo ali me deu um rasgo. Meu céu se rasgou e entrou luz. 

Quando foi isso?

Foi há vinte anos, quando Maria Bonita tinha ainda seis meses de idade. E a partir daquele momento comecei a perceber que a felicidade é uma proposta sua. É você entender o seu espaço na vida, entender o milagre que é estar vivo, entender que as coisas mais simples e comezinhas são exatamente aquelas que te deixam mais feliz. Eu faço o que eu quero.

Eu tinha uma herança de depressão na minha família – do meu pai, da minha mãe… Tive que passar muitos anos tendo que lutar contra o comportamento quase que mimético de imitar o suicídio da minha mãe, depois o do meu pai, e no ano passado da minha irmã. Mas isso foi uma coisa que pra mim, quando eu era garoto, me imprimiu muito, a minha mãe tentou vinte vezes o suicídio, até se matar. Então isso imprimiu um padrão de repetição que me assombrou por muitos anos na minha vida. Mas a partir desse momento que eu te falei com minha gata, eu nunca mais fiquei deprimido. Nunca mais. A própria perda dela foi uma perda de uma filha, a Maria Bonita, no ano passado. 

Mas nada me fez cair num abismo mais, entendeu? Aí eu comecei a lidar com a dor da vida de uma maneira mais madura, mais serena. E absorver a dor de uma maneira mais tranquila e prosseguir feliz. 

Saber que a minha intenção é ter uma vida intensa e ter uma boa morte. Então esse é o meu plano de vida, são metas que eu tenho de vida. Ter uma vida intensa, produzir muito, muito, muito, muito. Poder dividir isso com o maior número de pessoas possível e ter um bom fim. Diferente dos meus pais e da minha irmã. Talvez, quem sabe, onde eles estiverem, eu poder, tendo uma boa morte, eu ter o cacife de chegar e poder resgatá-los aonde quer que eles estiverem.