Pesquisa avalia como tratamentos de infertilidade podem impactar as relações familiares e de trabalho

Foram avaliados casais que estavam em tratamento de reprodução assistida no Instituto Ideia Fértil, vinculado à FM-ABC, na Grande São Paulo (imagem: RWJMS IVF Laboratory/Wikimedia Commons)

Fernanda Bassette | Agência FAPESP – A infertilidade é um problema que afeta de 8% a 12% dos casais em idade reprodutiva no mundo todo – para alguns deles, o problema interrompe um projeto de vida, que é o desejo de ter filhos e de construir uma família. Os avanços tecnológicos e da medicina tornaram possível a realização de tratamentos de reprodução assistida, mas eles podem ser física e psicologicamente exaustivos para os casais envolvidos, especialmente por causa das expectativas com resultados que talvez não sejam alcançados.

Os impactos emocionais do tratamento são bem estabelecidos na literatura científica. A frustração com resultados negativos impacta o bem-estar psicológico e social do casal, que pode desenvolver sintomas como depressão, ansiedade, raiva e estresse, piorando a qualidade de vida. Agora, um estudo realizado na Faculdade de Medicina do ABC (FM-ABC) com apoio da FAPESP investigou pela primeira vez os conflitos trabalho-família nesses pacientes, que podem estar associados, por exemplo, com ausências frequentes motivadas por consultas médicas ou exames.

Os resultados, divulgados na revista Psychology, Health & Medicine, indicam que o nível de conflito trabalho-família é maior entre os homens, enquanto o estresse afeta mais as mulheres.

Ao todo, foram avaliados 242 casais que estavam em tratamento de reprodução assistida no Instituto Ideia Fértil, vinculado à FM-ABC, na Grande São Paulo. Entre os participantes, a mediana de idade era de 37 anos; 60% eram mulheres; 67% tinham concluído a universidade; 37% estavam casados há mais de dez anos, 26% estavam casados entre cinco e dez anos e 37% estavam casados há cinco anos ou menos.

Na maioria das vezes os tratamentos de reprodução assistida demandam tempo e alto investimento financeiro, que às vezes são fatores estressantes para os pacientes que trabalham. Contudo, faltam na literatura científica dados sobre o impacto desse procedimento nos conflitos trabalho-família.

“Pacientes inférteis em tratamento podem enfrentar perda de emprego devido a ausências frequentes para consultas médicas e exames. É frequente que a mulher peça o atestado médico sem o logotipo da clínica, por exemplo, para que o empregador não saiba que ela está tentando engravidar”, conta Victor Zaia, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde da FM-ABC e autor responsável pelo estudo.

Além disso, esses pacientes também podem experimentar redução de produtividade, dificuldades de concentração, desafios no gerenciamento de efeitos colaterais de medicamentos e dificuldades com gerenciamento de tempo. “O conflito trabalho-família surge quando esses indivíduos vivenciam tensão ao tentar cumprir responsabilidades profissionais e pessoais. Muitos enfrentam estresse, fadiga, exaustão emocional, distúrbios do sono, insatisfações, problemas conjugais, diminuição da produtividade. Consequentemente, isso pode resultar em conflitos entre essas funções, com repercussões físicas e psicológicas.”

Escalas de avaliação

Para chegar aos resultados, os pesquisadores aplicaram questionários on-line para avaliar os casais. Eles responderam a questões de quatro escalas validadas internacionalmente: Escala de Estresse Relacionado à Infertilidade-Brasil (IRSS); Escala de Resiliência Connor-Davidson 10 (CD-RISC 10); Escala de Suporte Social Percebido (PSSS) e Escala de Conflito Trabalho-Família.

Na Escala de Estresse Relacionado à Infertilidade, os voluntários responderam a 12 questões envolvendo o estresse interpessoal (sobre como situações da infertilidade atrapalhariam o cotidiano dessa pessoa com amigos, família, cônjuge) e perguntas sobre estresse intrapessoal (sobre quanto o problema da infertilidade interfere no seu bem-estar físico e emocional).

Na Escala de Resiliência, os participantes responderam a dez questões sobre sua capacidade de se adaptar às mudanças que acontecem na vida; sobre superar as dificuldades depois de doenças ou outros problemas; sobre conseguir pensar com clareza quando está sob pressão, entre outras.

O diferencial nesse caso, explica Zaia, é que a pesquisa focou em algo que estava acontecendo naquele momento – que era o tratamento de reprodução assistida –, enquanto muitas pesquisas sobre resiliência perguntam sobre algo que já aconteceu no passado, buscando a memória. “Em nosso estudo, as pessoas estavam iniciando o tratamento de reprodução. Então o impacto, a situação de risco, estava sendo vivido no agora.”

A terceira ferramenta usada na pesquisa foi a Escala de Suporte Social Percebido que, como o próprio nome diz, busca entender em 29 perguntas se o participante recebe e percebe algum tipo de apoio emocional ou prático do cônjuge, da família, dos amigos.

Por último, os pesquisadores aplicaram a Escala de Conflito Trabalho-Família – a mais importante dentro do recorte que eles buscavam estudar. Ela tem como objetivo avaliar as interferências entre os ambientes familiar e de trabalho dentro de duas subescalas: Interferência do Trabalho na Família e Interferência da Família no Trabalho.

Nas análises, os participantes do sexo masculino exibiram maior resiliência e menores níveis de estresse, tanto intrapessoal quanto interpessoal, em comparação com as mulheres que estavam em tratamento de infertilidade. No entanto, pacientes do sexo masculino relataram níveis mais altos de interferência do trabalho na família. Além disso, houve diferenças significativas de conflito trabalho-família com base na renda do casal: aqueles com rendas mais altas relataram mais interferências.

Por outro lado, o estudo apontou que as mulheres em tratamento de infertilidade apresentam níveis mais baixos de resiliência e níveis mais altos de estresse – o que pode ser explicado, segundo os autores, pelas expectativas sociais em torno da maternidade, que é considerada um papel central para as mulheres. Os pesquisadores também encontraram correlações significativas entre resiliência e suporte emocional; estresse intrapessoal; e estresse interpessoal.

“O estresse sozinho não explica o conflito trabalho-família. Mas concluímos que, se a pessoa tiver mais estresse, pouco suporte social, menos resiliência, muito provavelmente ela terá maiores níveis de conflitos. E se a pessoa não conseguir gerenciar esses conflitos, ela provavelmente terá mais estresse, levando a uma espécie de círculo vicioso”, explica Zaia.

Do ponto de vista da prática clínica, diz Zaia, esses resultados podem orientar os profissionais de saúde a trabalhar com os casais na busca do fortalecimento das estratégias para melhorar e fortalecer os aspectos de resiliência e de suporte emocional. “Todas as questões são importantes. Esse casal está sofrendo. Precisamos melhorar a comunicação e o suporte, além de trabalhar estratégias de manejo do estresse de modo que a adaptação ao tratamento possa ser melhor”, explicou o pesquisador.

De acordo com Zaia, existem duas maneiras de tentar driblar esses conflitos: a resiliência (que é a capacidade de adaptar-se às mudanças significativas na vida) e o suporte social. A resiliência é considerada um fator de proteção porque ela pode moderar a relação entre o estresse e a qualidade de vida, diminuindo os possíveis efeitos adversos do estresse relacionado à infertilidade. E o suporte social, por sua vez, ajuda porque estar cercado por indivíduos que oferecem apoio emocional e prático pode reduzir a carga afetiva da infertilidade e possivelmente aliviar os desafios do tratamento.

Reprodução assistida

A infertilidade é definida como a incapacidade de engravidar após pelo menos um ano de relações sexuais regulares desprotegidas. Os tratamentos de reprodução assistida existem, mas demandam tempo e alto investimento financeiro. Há poucos serviços no Sistema Único de Saúde (SUS) que oferecem esse tratamento – e eles são muito restritivos (impõem limites de idade, por exemplo).

Relatório do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) no Brasil publicado em março deste ano  aponta que o Brasil possui 192 clínicas de reprodução assistida, sendo apenas 11 públicas (6%). O custo de um ciclo completo de fertilização in vitro variava, em 2023, entre R$ 15 mil e R$ 100 mil, dependendo do número de tentativas, do procedimento usado e da localidade da clínica. A clínica envolvida no estudo é uma Organização Social e os pacientes atendidos no local pagam somente pelo custo dos tratamentos, que partem de R$ 3 mil.

O artigo Relationships between work-family conflict, infertility-related stress, resilience and social support in patients undergoing infertility treatment pode ser lido em: www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/13548506.2024.2418437.